Seu Júlio Cachico, 100 anos!
Há cem anos
nascia Júlio Ferreira Lima, popularmente conhecido em Tarauacá como seu “Júlio
Cachico”. Agricultor, seringueiro, comerciante. Nasceu em 29 de março de 1913. À
época que nossa cidade nascia. Descendente de nordestinos habitou o alto Rio
Murú durante muitos anos, passando a morar próximo a Tarauacá, lá nas “Oito
Praias”, no Rio Murú.
Anos depois mudou-se para a rua
Manoel Lourenço, bairro da Praia, onde viveu até o fim de seus dias; dedicando-se
ao comércio nas décadas de 70, 80 e início da década de 90. Com problemas na
visão em decorrência das horas a fio em que passava defumando leite de seringa,
a partir daí ficou impossibilitado de continuar exercendo a atividade
comercial.
Casou-se com a D. Alzira. Dessa união
nasceram, entre homens e mulheres, sete filhos: Raimundo (in memorian),
Francisquinha, Peixoto (in memorian), Jóia, Cleta, Elmar e Eldon (in memorian).
Depois, já na cidade, adotaram o Amiraldo. E a história familiar continua com
netos, bisnetos e tataranetos. Gerações e gerações. Homem de conduta exemplar
nos ensinou valores importantes, tais como: trabalhar, suar pelo próprio
sustento; viver as próprias custas; respeitar as pessoas.
Dele herdei a paixão pelo Vasco da Gama, pela política, a boa prosa, escutar música e uma mesa farta. Recentemente também
descobri que herdei o gosto pelo chá Hoasca. Pois naquela época de seringal
Colombo, décadas de 50 e 60, ele bebeu por diversas vezes o Cipó – um dos nomes
dado a esse chá milenar utilizado pelos povos amazônicos, conhecido aqui no
Acre e ao redor do mundo também como Ayahuasca, Vegetal, Daime, dentre outros.
Naquela época, lá no seringal, esse chá era preparado pelos irmãos Jaqueson e
Gerson Furtado. Era um apreciador dessa cultura ancestral amazônica da qual
hoje também faço parte.
Outra
coisa que eu admirava era sua prosa. Cena comum naquela época com seus amigos
mais próximos – especialmente à noite em sua casa. Ainda lembro de alguns
habituais: Chico Sérgio, Orlando Marques, Joca Teles, Luiz Melo, Paulo Lins,
Sebastião Gonzaga, Salustiano, Ubaldo Patoá, Rames e Samir Eleamen, dentre
outros.
Era
gostoso vê-los conversando, contando “causos”. Logo cedo, em sua loja, era
possível reencontrá-los para tomar o cafezinho quente da dona Alzira – minha
amada avó. Sua loja também era ponto de encontro das pessoas, seus fregueses,
vindos dos seringais. Onde todos eram bem tratados e atendidos sem distinção de
cor, credo e classe social.
Seu
Júlio não era aquele homem brincalhão, mas também não era ranzinza. Lembro-me
de tê-lo visto aborrecido apenas uma vez. Em 1985, escolha para o candidato a
prefeito de Tarauacá. Ele partidário e convencional do velho MDB, tinha
preferência pessoal pelo Sr. Chico Sérgio. A cúpula partidária da época
sabedora disso o excluiu para que ele não participasse da convenção. Dali em
diante afastou-se do ativismo político. Também não era aquele homem religioso,
carola. Mas tinha uma imensa fé em Deus e uma devoção a Santo Antônio, mantendo
uma pequena imagem de chumbo no caixa da loja. Eu o perguntava por que aquilo?
Ele dizia que era pra dar sorte. Eu acho que dava mesmo. Ele me falava de uns
livramentos acontecidos em razão dessa devoção.
Ainda jovem, na transição da infância
pra adolescência, ganhei dele o “primeiro emprego” – vendedor. Entre uma coisa
e outra ele já me ensinava na prática princípios que me servem até hoje: honestidade
e integridade. Naquela época a maioria dos produtos ainda vinha a granel:
arroz, feijão, açúcar etc. Muitas vezes a tarefa de pesar aqueles produtos era
minha. Mas ele observava atentamente a pesagem para verificar se estava
correta, se não estava faltando alguma coisa, e sempre aquela voz: - “deixa
passar um pouquinho que não faz mal!”.
Disso lembro vagamente, mas minha mãe
conta que eu com uns seis ou sete anos já lia. E como é natural essa
afetividade do neto pelo avô e vice-versa, eu adorava a sua companhia. Assim eu
ia muito a sua loja. Então ele me colocava pra ler aqueles folhetos de
literatura de cordel pros seus amigos ouvir. Aquilo lhe dava uma enorme
satisfação. Deixava-o lisonjeado.
Em 1982 aconteceu a primeira eleição majoritária
e proporcional após a redemocratização. Eu, ainda menino, ficava ensinando as
pessoas adultas a votar no Nabor Júnior, Mário Maia e nos outros candidatos do
MDB. Era o tempo do voto camarão. Deu até vontade de rir agora! Incutindo em
mim – subliminarmente – a vontade de participar ativamente da vida política.
Eleição em interior era festa. Eu gostava daquele movimento. As regras não eram
tão rígidas quanto agora. Enfim, como falei: era festa! Os que têm mais idade
com certeza lembrarão dos folclóricos comícios de antigamente em Tarauacá.
Como era bom naquelas manhãs em que
ficávamos na loja dele vendendo, conversando, ouvindo o rádio que ficava o dia
todo ligado. Ele adorava escutar a programação da Rádio Nacional da Amazônia. Márcia
Ferreira, Edelson Moura, José Neri e Paulo Torres. Esses eram seus locutores
prediletos. A vida era mais amena, simples e adorável naquela época. Até hoje
ainda adoro ouvir rádio. Já não é por meio daqueles rádios bonitos que ele
tinha – e que de vez em quando eu os desmontava, agora é no carro ou pela
internet, pois os tempos mudaram, mas preservei a cultura aprendida na
infância.
Homem de bom coração, uma referência pra
mim. Ainda guardo comigo o amor que sinto por ele. Até hoje a saudade que sinto
permeia suavemente meu pensamento. Mais que um neto eu era seu fã! Queria ter
convivido com ele numa fase mais adulta, ter aprendido mais coisas. Mas as
coisas duram o tempo suficiente para tornarem-se inesquecíveis.
Lembro
que quando comecei a trabalhar na Rádio Difusora de Tarauacá, em seu último
aniversário em vida, ele me pediu que pusesse pra tocar uma música do Roberto
Carlos: Meu querido, meu velho, meu amigo. Não lembro por que cargas d’água não
fiz isso. Isso me dói até hoje.
Faleceu
em novembro de 1992, vítima de um câncer na próstata. Com essa homenagem
póstuma no centenário de seu nascimento terminarei com uns versos
dessa música do Rei! E viva o centenário de Júlio Ferreira Lima! Viva o centenário de
Tarauacá!
“Esses seus cabelos
brancos, bonitos, esse olhar cansado, profundo
Me dizendo coisas, um grito, me ensinando tanto, do mundo...
E esses passos lentos, de agora, caminhando sempre comigo,
Já correram tanto, na vida, meu querido, meu velho, meu amigo.”
Jean
Carlos Freire Lima
Administrador
Servidor da Justiça Eleitoral
Acadêmico de Direito
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